Um novo caminho para o planeamento marinho na Antártida

O trabalho da equipa de Catarina Frazão Santos na Antártida nasceu de uma descoberta inesperada: apesar de décadas de investigação polar, não existia qualquer processo formal de ordenamento do espaço marinho no continente. A partir do projeto MSPOLAR e agora com o projeto PLAnT, a equipa da investigadora está a colmatar essa lacuna e a colocar o tema na agenda internacional.  

A porta de entrada para o ambiente polar abriu-se com o projeto MSPOLAR: Marine spatial planning in Polar Regions, um projeto exploratório financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que comparava iniciativas de ordenamento do espaço marinho no Ártico e na Antártida. A equipa do OceanPlanning Lab, coordenada pela investigadora e professora do MARE/ARNET em Ciências da ULisboa, Catarina Frazão Santos, percebeu rapidamente que existia um contraste profundo entre as duas regiões. “Vimos que havia vários artigos sobre o Ártico, mas nada sobre a Antártida”, recorda Catarina Frazão Santos. O Ártico tinha processos nacionais de planeamento, enquanto na Antártida não havia estrutura formal, apenas gestão setorial. 

Essa ausência tornou-se o ponto de partida para imaginar algo novo. Trabalhar nos polos era, aliás, um desejo antigo da equipa. “Há uns anos, pensámos em submeter um projeto para irmos ao Ártico ou à Antártida. Era literalmente isso: vamos aos polos”, conta Francisco Borges. Catarina Pereira Santos descreve a entrada no projeto como uma coincidência feliz e um salto para um mundo “quase alienígena”. 

A partir deste impulso, nasceu o PLAnT “Planning for sustainable ocean use in Antarctica under global change”, um projeto europeu ERC (European Research Council) que começou em março de 2024 e que vai decorrer até 2029. O objetivo, nas palavras de Catarina Frazão Santos, é perceber “quais são os principais desafios e oportunidades de desenvolver um ordenamento do espaço marinho na Antártida que tenha em conta as alterações climáticas e que possa ser replicado noutros locais do mundo”. 

 

Investigar para gerir melhor 

No momento presente, o PLAnT desenvolve-se em três linhas de investigação. A primeira envolve a análise de mais de 30 mil documentos produzidos ao longo de sessenta anos de reuniões do Tratado da Antártida. Catarina Pereira Santos está a desenvolver uma ferramenta de análise de grandes quantidades de informação, com o apoio de técnicas de machine learning e text mining, que permita “navegar e quantificar o que é dito nos documentos, utilizando análise de sentimento e análise temática”. O objetivo é “agilizar o processo, tentando unir os mundos das ciências naturais às ciências sociais”, explica. 

Para a segunda linha de investigação, Francisco Borges está a rever a informação disponível sobre modelação da distribuição de espécies na região Antártica e a avaliar como se poderá integrar projeções climáticas e atividades humanas nesses modelos. “Há poucos estudos que juntem estas duas dimensões”, sublinha. O objetivo será identificar “espécies ainda pouco estudadas, mas com valor tanto ecológico como socioeconómico, e propor a melhor forma de integrar as projeções climáticas existentes com os usos humanos, obtendo, assim, uma abordagem holística para a modelação da distribuição das espécies na região”. 

No âmbito da terceira linha de investigação, irá ser desenvolvido um mapeamento participativo com base em entrevistas dirigidas a cientistas e outros intervenientes na região, com o objetivo de se obter uma visão global dos vários setores e dos vários agentes envolvidos. As entrevistas-piloto terão início na campanha que se realizará em fevereiro de 2026 e que levará os três investigadores à Antártida pela primeira vez. 

 

Da ciência à diplomacia 

Durante mais de seis décadas, o ordenamento do espaço marinho nunca tinha sido discutido formalmente no âmbito do Tratado da Antártida, embora o tema tenha surgido na década de 80. Mas em 2024, tudo mudou. O artigo que Catarina Frazão Santos publicou na revista Science, apresentou a Antártida como o local ideal para testar um ordenamento inteligente do ponto de vista climático, abrindo caminho ao primeiro debate oficial sobre o tema. “O artigo saiu três dias antes das reuniões do Tratado da Antártida começarem; foi de propósito para ter impacto”, explica Catarina Frazão Santos. 

O resultado foi imediato. O tema entrou na agenda pelas mãos da equipa e voltou no ano seguinte, agora com a investigadora a integrar a Delegação Portuguesa. “Em termos de impacto, foi muito relevante”, afirma. 

Terão sido várias as razões que justificaram a ausência de discussão do tema. O principal uso na Antártida tem sido a pesca que é gerida de forma sustentável, desde 1982, pela Comissão para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos (CCAMLR). Mas o crescimento exponencial do turismo na região tem assumido proporções que exigem uma melhor gestão da atividade, e essa e feita no âmbito do Tratado da Antártida. Segundo Catarina Frazão Santos, “é através do ordenamento do espaço marinho que se gerem os diferentes usos, a pesca, o turismo, a investigação e a conservação”. A Antártida precisa de uma visão integrada para responder ao que já não pode ser gerido por setores isolados. 

 

Um ecossistema em rápida mudança 

Segundo Francisco Borges, “a Antártida tem um papel central nos ciclos biogeoquímicos do oceano global e sabemos que as alterações climáticas têm o potencial, mesmo nos cenários mais conservadores e menos catastrofistas, para provocar alterações substanciais”. 

Catarina Pereira Santos acrescenta que, com o aumento da temperatura do mar, se prevê “uma compressão dos territórios disponíveis para megafauna, como orcas, baleias e outros organismos carismáticos na região” e uma diminuição das áreas disponíveis para a sua alimentação. Espera-se que tal resulte na diminuição das populações destas espécies emblemáticas, o que afetará a conservação e o turismo. A Antártida também é “a última fronteira física” para muitas espécies que, com o aumento da temperatura da água do mar, se deslocam para o sul. 

A viagem que irão realizar em fevereiro será a primeira experiência da equipa no terreno. A viagem longa, os voos dependentes da meteorologia, a vida numa base com cinquenta pessoas e a incerteza das tempestades fazem parte dos desafios. Levam na mala roupa quente e muitas expectativas. Francisco quer ver “um iceberg gigante”, Catarina Pereira quer ver pinguins e Catarina Frazão Santos quer “ver nevar de outra perspetiva”. 

E deixam-nos uma reflexão final: “O Tratado da Antártida foi criado num contexto histórico muito complicado e continua a funcionar para o bem comum. Diz-nos que há esperança e que não devemos baixar os braços”. 

 

Texto de Vera Sequeira e Joana Cardoso