Um estudo conduzido pelo MARE em Ciências ULisboa detetou contaminantes inesperados na Antártida, desde fármacos oncológicos a resíduos de detergentes, revelando a dupla pressão natural e humana que marca a Ilha Deception. 
Um laboratório natural
A investigação de Bernardo Duarte, do MARE/ARNET em Ciências ULisboa, começou com um convite inesperado. Trabalhava em poluição nos estuários portugueses quando foi desafiado a aplicar o mesmo tipo de abordagem num dos ambientes mais extremos do planeta. “Queres fazer na Antártida o que fazes cá?”, e não hesitou.
O destino foi a Ilha Deception, uma caldeira vulcânica quase circular, onde a hidrodinâmica é reduzida e o vulcanismo ativo liberta concentrações naturalmente elevadas de mercúrio. “A água dentro da baía demora cerca de dois anos a renovar, mas é uma zona hiperprodutiva apesar das elevadas concentrações de mercúrio”, descreve. Este ambiente torna-se, assim, um local único para estudar adaptações biológicas a pressões extremas.
Chegar lá é, por si só, parte do desafio. “A travessia entre a América do Sul e Deception pode ser bastante violenta, tendo em conta as correntes e marés”. Em algumas campanhas, o mar esteve tão agitado que navios se erguiam quase na vertical, não sendo possível a tripulação manter-se em pé.
Montar um laboratório à distância
Para realizar o trabalho previsto, a equipa precisava de equipamento laboratorial que não existe na maioria das bases antárticas. “Deslocámos metade do laboratório para Cádis para ser embarcado até à Antártida”, recorda Bernardo. O laboratório foi preparado em terra e enviado por barco: equipamento analítico, centrífugas e outro material essencial. Em terra, no extremo sul da América, Carla Gameiro, membro da equipa de campo, aguardava uma janela de bom tempo para que o avião a conseguisse levar até Deception.
A recolha de amostras é bastante rigorosa e segue procedimentos apertados. Na Antártida, todas as equipas têm de listar cada amostra que pretendem recolher e justificar o impacto. Tudo o que foi possível recolher foi recolhido, e muitas das amostras ainda aguardam uma análise mais detalhada.
As expectativas eram baixas. “Suspeitava que as nossas técnicas não tivessem resolução suficiente para encontrar alguns dos compostos; achava que ia estar tudo demasiado diluído”, revela Bernardo Duarte. Mas o que encontraram foi exatamente o contrário.
Vestígios humanos num lugar remoto
Os primeiros resultados foram surpreendentes. “Encontrámos uma variedade enorme de contaminantes que não estávamos à espera de encontrar naquele ambiente”. Entre os compostos identificados surgiram drogas ilícitas como esteroides anabolizantes; fármacos antineoplásicos associados a tratamentos oncológicos; biocidas (incluindo inseticidas, nematicidas e fungicidas); derivados de plásticos; detergentes, como o SDS (presente em champôs, pastas de dentes, géis de banho e produtos domésticos); PCBs e DDT, ambos poluentes persistentes banidos há décadas; e hidrocarbonetos.
Nada disto parecia compatível com um dos lugares mais remotos da Terra. Mas os números recentes ajudam a compreender a origem destes compostos. “O turismo teve um enorme aumento naquela área”, refere o investigador. Dados da IAATO (Associação Internacional de Operadores Turísticos da Antártida) mostram que as visitas à região passaram de cerca de seis mil no início dos anos 1990 para aproximadamente 118 mil na temporada 2024/2025, um aumento de quase vinte vezes em três décadas.
É nesta presença que se encontra a resposta para o que foi encontrado. Mesmo quando existe algum tratamento de águas a bordo dos navios, “escapa sempre alguma coisa”. Navios com centenas de pessoas, durante semanas, produzem resíduos domésticos, químicos e farmacêuticos que não são totalmente tratados. O mesmo acontece em algumas bases científicas mais antigas, cujos sistemas de tratamento não conseguem remover todos os compostos modernos. E numa baía cuja água só se renova ao fim de dois anos, qualquer molécula que entra tem tempo para se acumular.
Sentinelas ambientais
Os contaminantes detetados na Ilha Deception não ficam apenas na água. Atingem os organismos que nela vivem. “Estes poluentes afetam o funcionamento do fitoplâncton e desencadeiam a proliferação de mecanismos de resistência a antibióticos em bactérias, induzidos pela presença de poluentes”, esclarece o investigador. Alterações no funcionamento das comunidades fitoplanctónicas, que constituem o primeiro elo da cadeia alimentar, podem ter consequências importantes na produtividade marinha.
Mas é nas bactérias que surge a resposta mais imediata à presença de contaminantes. Os resistomas são “um conjunto de genes associados à resistência a antibióticos e metais pesados”; são uma espécie de registo ambiental que permite avaliar o impacto da presença de substâncias contaminantes nos organismos.
Bernardo verificou que na Baía das Fumarolas, onde há emissões de mercúrio naturais há milhares de anos, este poluente já não constitui um fator de stress e a adaptação é estável e previsível: “O mercúrio já não é um stress novo; as bactérias daquela zona estão expostas há milhares de anos”, explica. Mas perto da Base Gabriel de Castilla, onde foram detetados os contaminantes de origem antropogénica, as bactérias revelam outro tipo de assinatura: “Vemos resistências que são claramente humanas”. 
Na Ilha Deception, existem, portanto, dois tipos de resistomas que acabaram por evoluir e responder de formas diferentes às pressões naturais e humanas. “Estamos a averiguar até que ponto podemos usar estes genes de resistência como marcadores de pressão numa comunidade que responde mais rapidamente do que qualquer outra”, explica o investigador.
Para o Bernardo Duarte, o diagnóstico não implica travar a investigação ou o turismo, mas sim repensar a forma como são feitos. Melhorar os sistemas de tratamento de águas em navios e bases, reforçar os limites às descargas e controlar a pressão turística são passos inevitáveis. Estas pressões precisam de entrar nas discussões internacionais sobre o futuro da região: a Antártida é um ecossistema frágil e o que ali se acumula acaba por refletir decisões tomadas muito longe dali.
Projetos futuros
Bernardo não esconde a sua vontade de continuar a investigar na região da Antártida. Gostaria de avançar para a análise dos PFAS, os chamados “contaminantes eternos” por não se degradarem no ambiente. São altamente persistentes, acumulam-se nos organismos e estão associados a efeitos tóxicos que vão desde perturbações hormonais e imunológicas até impactos no fígado e no desenvolvimento. Estes compostos incluem substâncias como o teflon, espumas anti-incêndio, impermeabilizantes e revestimentos industriais. Já foram encontrados no Ártico, em ursos-polar e até na água da torneira em cidades europeias.
“Gostava de saber se também estão ali, mas para isso era preciso recolher e preservar as amostras de outra forma”. Na altura da expedição em que participou, ainda não havia acesso a metodologias e procedimentos que permitissem detetar esses compostos.
A Ilha Deception revelou-se um espelho, que expõe como pressões naturais e humanas se cruzam num ecossistema frágil, sensível e global. Para Bernardo Duarte, a Antártida “é um laboratório vivo” e o que ali acontece não fica só por lá. “Temos de olhar para os polos como olhamos para os ecossistemas perto de nós. Não é por estar longe que deixa de nos dizer respeito”.
Texto de Vera Sequeira e Joana Cardoso
Fotografias de Carla Gameiro