Onde o vento manda: as aves marinhas das ilhas subantárticas

Durante mais de vinte anos, Paulo Catry, investigador do MARE ISPA, regressa todos os anos às ilhas Falkland para acompanhar a vida dos albatrozes-de-sobrancelha. O estudo prolongado que construiu tornou-se uma referência internacional e revela como o Oceano Austral está a mudar perante alterações climáticas, doenças e pressões humanas.  

Foi em 2002 que Paulo Catry fez a sua primeira viagem às Falkland (também conhecidas por Malvinas), um arquipélago remoto do Atlântico Sul, composto por mais de quatrocentas ilhas de clima frio, ventoso e seco. Apenas uma pequena parte é habitada, enquanto o restante território permanece praticamente intocado, com costas rochosas, planaltos de vegetação baixa e vastas colónias de aves e mamíferos marinhos. O seu isolamento, a fauna abundante e a proximidade ao Oceano Austral fazem delas um dos locais mais importantes do hemisfério sul para o estudo de ecossistemas subantárticos. 

Na altura foi a convite de uns colegas realizar a primeira estimativa populacional do Prion-de-bico-fino (Pachyptila belcheri), cuja colónia em New Island (uma das ilhas Falkland) se revelou a maior do mundo. Foi o primeiro passo para um projeto a longo prazo que ainda hoje continua. Entre pinguins, leões-marinhos, lobos-marinhos e muitas outras espécies, Paulo pediu para trabalhar com os albatrozes-de-sobrancelha, espécie de ave marinha que encontra nas Falkland a sua maior população. 

A partir daí, a investigação nunca mais parou. “Temos um pool de cerca de 500 indivíduos adultos que estão marcados individualmente e todos os anos vamos ver como estão. São animais muito longevos e este investimento ganha valor à medida que o estudo se prolonga“, explica. Esta estratégia permite estudar a sobrevivência, a reprodução, o comportamento, as deslocações no mar e as reações a alterações ambientais com um rigor raro no estudo de aves marinhas. 

O projeto tem sido apoiado consistentemente pelo governo das Falklands, contando também com outros financiamentos provenientes de projetos nacionais (incluindo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia) e europeus, envolvendo universidades e institutos britânicos, franceses e norte-americanos, bem como parceiros locais, além de estudantes e voluntários que se revezam no trabalho de campo desde outubro até ao final de fevereiro. O resultado é uma das séries temporais mais completas do hemisfério sul sobre uma população selvagem. 

 

Onde o vento dita o ritmo 

As condições ambientais e logísticas moldam a investigação tanto quanto os próprios dados. Chegar ao local de estudo pode demorar entre cinco e dez dias e depende de ligações escassas e de meteorologia difícil. “Já aconteceu sermos só eu e o piloto”, recorda. Pequenas avionetas ligam as ilhas e, com mau tempo, os voos são cancelados por vários dias. “É muito desafiante, porque as viagens são muito difíceis, são muito demoradas, o mau tempo pode impedir-nos de chegar a uma ilha, ou ainda pior, de sair da ilha”, confessa Paulo. 

No terreno, o vento é a força dominante. “Dois ou três graus com vento forte não têm nada a ver com a nossa experiência aqui. Às vezes, é até difícil mantermo-nos de pé.” Mas apesar das condições adversas, a relação com a fauna é extraordinária. “Os animais não têm praticamente receio das pessoas. O albatroz está no seu ninho e nós podemos caminhar até ele, agarrá-lo ou medir o ovo sem que fuja”, conta. “Temos milhares de lobos-marinhos, cem mil pinguins e quase meio milhão de albatrozes. Já tivemos de afastar lobos-marinhos para chegar ao mar. É uma experiência muito diferente e muito engraçada”, confessa. 

Viver nas Falkland também não é para todos. Embora a maioria dos sítios tenha uma infraestrutura mínima, que pode incluir uma casa com energia solar e fontes de água, há ilhas onde isso não acontece: “aí temos de acampar com frio e temos de levar tudo. Mas essas estadias costumam ser curtas, de uma ou duas semanas”. Para emergências, há apenas um telefone de satélite e não há acesso à internet.  

 

O que os albatrozes revelam sobre um oceano em mudança 

Os dados acumulados ao longo dos anos permitiram identificar padrões interessantes que relacionam as condições ambientais e o bem-estar das aves. Durante a primeira metade do estudo, observou-se “uma trajetória demográfica positiva, pois houve um grande esforço para reduzir as capturas acidentais associadas à pesca industrial”. Mas a tendência está a mudar e, nos últimos anos, as condições têm-se degradado, tornando a trajetória negativa, embora não muito acelerada. 

A correlação entre os fatores ambientais e o estado da população de albatrozes-de-sobrancelha permitiu documentar outros factos curiosos. Os albatrozes geralmente formam casais para a vida, mas também se divorciam, embora a taxa seja pequena. Além disso, sabe-se que a probabilidade de divórcio é mais elevada quando a reprodução não tem sucesso. Mas Paulo Catry e a sua equipa, ao analisarem a série temporal de que dispõe, constataram algo surpreendente: “em anos em que a temperatura da água do mar está mais elevada e as condições estão mais difíceis, estas aves divorciam-se com maior frequência”, um resultado que sugere como as alterações climáticas poderão impactar estas populações no futuro. Foi a primeira vez que alguém documentou este resultado em aves. 

 

 

Ameaças além do clima 

Para além das alterações climáticas, as aves subantárticas enfrentam outras ameaças. 

A crise mundial da gripe das aves, que iniciou a sua expansão na Europa há cerca de três anos e já alcançou todo o mundo, chegou recentemente ao Oceano Austral. A equipa de Paulo Catry, em conjunto com outros investigadores, tem estudado o impacto desta doença numa outra espécie: os alcaides, ou moleiros. São aves predadoras e necrófagas que consomem carcaças de outras aves potencialmente infetadas por vírus, bactérias e outros agentes patogénicos, estando particularmente expostas a doenças. Uma espécie muito semelhante que existe na Europa, registou uma mortalidade de três quartos da população nas Ilhas Britânicas devido à doença. 

Mas na Antártida, apesar de se terem registado taxas de infeção próximas de 100 por cento, a mortalidade revelou-se surpreendentemente baixa. A hipótese de Paulo Catry assenta na ecologia comportamental destas aves: “Estes alcaides lá nos mares do Sul estão mais dependentes da predação e da atividade necrófaga, e é possível que estas aves invistam mais no sistema imunitário, porque, pelo seu estilo de vida, estão mais expostas a agentes patogénicos”, o que as tornará mais resistentes à doença.  

Mas a maior ameaça às aves, segundo o investigador, será provavelmente a pesca, quer dirigida, quer acessória, juntamente com um outro fator: a introdução ocorrida no passado de espécies como ratos e gatos nestas ilhas oceânicas. 

 

A mensagem que fica 

Para Paulo Catry, a Antártida é, acima de tudo, “selvagem”. O seu trabalho mostra como o Oceano Austral já reflete os efeitos das alterações climáticas e da pressão das pescarias, revelando mudanças rápidas num ecossistema sensível. 

O momento mais marcante da sua experiência continua a ser a primeira chegada ao terreno e a convivência próxima com animais que não demonstram qualquer receio do ser humano. 

Considera essencial que Portugal e o MARE mantenham presença na região, um verdadeiro “canário na mina” onde as transformações globais se tornam visíveis e reforçam a consciência pública sobre o estado do planeta. 

E deixa uma mensagem simples a quem o lê: “Vale a pena visitar”. 

 

Texto de Vera Sequeira e Joana Cardoso
Fotografias de Paulo Catry