Da costa portuguesa às águas polares, o grupo de Fitoplâncton e Deteção Remota estuda as mudanças em curso na base da cadeia alimentar, evidenciando impactos que se estendem a todo o oceano. 
A aventura na Antártida teve início em 2008, quando Carlos Rafael Mendes iniciou o seu doutoramento. Queria comparar os processos associados ao crescimento do fitoplâncton na costa portuguesa e no continente gelado. Numa colaboração entre o MARE em Ciências ULisboa e a FURG - Universidade Federal do Rio Grande, Brasil, colhia amostras nos locais de estudo e regressava a Lisboa com elas na mala. Depois desta viagem, já lá foi 15 vezes, as suficientes para ver como a região se alterou.
Desde essa altura, o grupo de Fitoplâncton e Deteção Remota do MARE em Ciências ULisboa tem ganho experiência e conhecimento ao analisar o fitoplâncton e a cor do oceano na costa portuguesa, complementando a análise de amostras recolhidas no mar com imagens de satélite, competências que Afonso Ferreira levou para a Antártida em 2017, quando participou na sua primeira expedição. Mas a Antártida tem desafios que não existem em latitudes temperadas. “Durante o inverno austral, não há luz, por isso não há satélite. E mesmo nos restantes meses, é uma região difícil: para imagens de satélite é preciso céu limpo”, esclarece Vanda Brotas, coordenadora do grupo de investigação.
Mas Afonso Ferreira não foi sozinho. Levou consigo Catarina Guerreiro, que estava habituada a trabalhar nos trópicos, mas que queria perceber a influência de poeiras desérticas na região do Oceano Austral: “Fui para aprender, fui para expandir a minha área de investigação, mas também para fazer pontes entre a minha temática de investigação e um novo ambiente”.
Este ano foi tempo de mais uma investigadora se juntar a esta aventura. Graça Sofia Nunes queria compreender melhor os blooms de fitoplâncton e como os fatores abióticos os influenciam, numa nova área de estudo na Antártida: o Mar de Ross.
A viagem
A logística polar começa muito antes de se ver gelo. Catarina Guerreiro recorda a preparação com entusiasmo: as formações obrigatórias, as semanas de planeamento e a expectativa pela primeira campanha. A passagem de ano foi passada em Punta Arenas e, no dia seguinte, embarcou no navio brasileiro Maximiano. “Toda a preparação foi brutal. Foi o maior embarque da minha vida. Foram 39 dias de mar”, conta.
A travessia incluiu regiões icónicas para quem estuda o oceano. “Há meridianos e latitudes que são especiais: atravessar o Equador, passar a Frente Polar, são fronteiras climáticas e oceanográficas, que marcam também diferenças de navegação”, explica. Ao atravessar a Passagem de Drake, um local temido por todos, mesmo com o mar agitado, manteve-se desperta para não “perder o momento”.
A chegada ao continente é difícil de descrever. Afonso Ferreira recorda que “é uma paisagem completamente alienígena”, tendo sido o momento que mais o marcou na primeira vez. Em 2020, viveu um episódio particularmente inesperado: “Estávamos lá quando se registou o recorde de temperatura atmosférica para aquela região. Estavam 18 graus. Andávamos de t-shirt num local onde normalmente estão 1 ou 2 graus. A paisagem estava completamente diferente do ano anterior.”
Ao longo destes anos, Carlos Rafael Mendes viu a região transformar-se. “Há zonas onde hoje conseguimos passar de navio que há 20 anos não conseguíamos, porque havia plataformas de gelo. É visível a olho nu: muito menos gelo, muito menos icebergs.”
Catarina Guerreiro acrescenta que a Antártida é tudo menos desabitada. “Cruzámos vários navios de turismo. Apesar de ser o sítio mais remoto onde estive, volta e meia passava um. Isso fez-me perceber que a Antártida já é mais visitada do que era, e mais do que deveria.”
Amostras de valor inestimável
Recolher amostras de fitoplâncton na Antártida não é muito diferente do que se faz noutros locais. Tudo começa no convés, com o sistema de rosete CTD, uma estrutura metálica com garrafas Niskin e sensores que medem temperatura, salinidade e oxigénio. “O equipamento desce devagar até às profundidades que queremos e vamos acompanhando, em tempo real, os valores dos sensores para identificar o pico máximo de clorofila”, explica Catarina Guerreiro. Quando esse pico surge, a equipa pede para parar o equipamento e fecha-se à distância uma garrafa, repetindo-se o processo a várias profundidades.
De volta ao convés, recolhem-se as amostras de cada garrafa e, no laboratório húmido do navio, essa água é colocada num sistema de filtração a vácuo. As microalgas ficam nos filtros que são cuidadosamente limpos e secos para depois se proceder à sua observação ao microscópio ou a análises bioquímicas. Todo o processo tem de ser preciso e rápido, porque cada amostra representa uma combinação rara de tempo, lugar e condições. “Cada amostra que nós colhemos nestas condições tem um preço inestimável, porque de facto é preciso uma complexa combinação de navio, equipamentos e logística que nós em Portugal não temos”, afirma.
Um ecossistema em mudança
O trabalho de Carlos Rafael Mendes tem revelado uma das mudanças mais marcantes na base da teia trófica antártica: “O principal resultado do meu doutoramento e dos meus estudos até agora é uma mudança na composição das microalgas. As diatomáceas, típicas dos ecossistemas antárticos, estão a ser parcialmente substituídas por criptófitas em várias regiões, sobretudo costeiras.” Estes resultados foram posteriormente publicados na prestigiada revista científica Global Change Biology.
As consequências são sérias. “O primeiro nível trófico na Antártida é composto por diatomáceas, que alimentam diretamente o krill e este, por sua vez, alimenta as focas, as aves marinhas e as baleias. Se a quantidade de diatomáceas diminuir, o krill não vai ter alimento e não vamos ter biomassa suficiente para alimentar todos os outros organismos da cadeia alimentar”.
Afonso Ferreira observou transformações complementares, através dos dados de satélite, que publicou na Nature Communications. “Detetei alterações a uma escala maior. Consegui observar que o fitoplâncton está a crescer durante mais tempo. Na Antártida, o fitoplâncton só cresce no verão austral, quando há luz, mas devido ao degelo, estamos a observar menos gelo na primavera e no outono, e o fitoplâncton consegue crescer para além do verão”. Mas o que parece ser um resultado positivo, não é. “Quando essa biomassa aumenta no final do verão, já não coincide com a presença de baleias e focas na região, uma vez que nessa altura já iniciaram as suas migrações”, esclarece Carlos Rafael.
O trabalho de Graça Sofia Nunes reforça esta tendência e acrescenta novas dimensões ao que se sabe sobre a região. No seu mais recente artigo publicado na revista Communications Earth & Environment (Nature Portfolio), a jovem investigadora analisou séries temporais de clorofila a, no Mar de Ross, e identificou alterações coerentes com os resultados de Afonso Ferreira. “Os blooms de fitoplâncton estão a iniciar mais cedo e a terminar mais tarde. A duração está mesmo a mudar.” A investigadora sublinha que o passo seguinte será conseguir separar grupos distintos de fitoplâncton através de dados de deteção remota, algo que ajudará a compreender melhor estas mudanças. A investigação de Catarina Guerreiro acrescenta uma peça essencial a este puzzle: os cocolitóforos, microalgas que formam uma carapaça de carbonato de cálcio e que existem há cerca de 220 milhões de anos, tipicamente em águas mais quentes e pobres em nutrientes. Nas amostras mais recentes, Catarina encontrou cocolitóforos muito bem preservados a sul da Frente Polar, uma surpresa com que não contava. Este resultado pode indicar que massas de água mais quentes e pobres em nutrientes estão a avançar para latitudes polares, mas a investigadora recusa conclusões apressadas: “Ainda não se sabe. Vamos ver. É preciso explorar os resultados numa perspetiva multidisciplinar. Precisamos de comparar os dados ecológicos com os dados físicos e químicos para suportar uma hipótese como esta.” 
Na crista da onda
A evolução do trabalho do grupo tem sido acompanhada pelo surgimento de novas ferramentas que permitem observar o fitoplâncton com maior detalhe, como o satélite PACE, recentemente lançado pela NASA. “Agora temos ferramentas que não tínhamos há uns anos, como o satélite PACE”, explica Vanda Brotas, salientando que a equipa está “na crista da onda” no uso desta tecnologia. Mas tirar partido destas ferramentas exige competências híbridas e altamente especializadas. “É preciso perceber de biologia para conhecer o fitoplâncton e ter competências computacionais para analisar imagens de satélite. É a integração destas áreas que faz a diferença”, sublinha a professora e investigadora.
Ana Brito acrescenta que trabalhar com o PACE é uma oportunidade, mas também um desafio exigente, que depende de investimento e tempo. “Conseguir estar na crista da onda implica termos financiamento na altura certa, não só para as pessoas, mas também para desenvolver os produtos. O PACE traz ferramentas novas, mas ainda há muito trabalho a fazer para conseguirmos usá-las da forma que queremos”, afirma. Para a investigadora, consolidar esta especialização requer formação contínua e equipas preparadas para lidar com tecnologia que ainda está a dar os primeiros passos.
Uma viagem transformadora
A Antártida não é apenas um lugar de trabalho. É um lugar que se entranha. Catarina Guerreiro admite isso sem hesitar: “Demorei meses a adaptar-me quando voltei. Tive mesmo uma espécie de ressaca”. Para Afonso Ferreira, um dos momentos que ficou gravado na memória foi a observação do primeiro iceberg. “Quando vi o meu primeiro iceberg, foi assim uma coisa”, recorda, num misto de espanto e desarmamento perante a escala do continente. Ana Brito, ainda não esteve na Antártida, mas imagina o dia em que finalmente a pisará: “Quero sentir aquele ar frio e a conexão com o ambiente à volta”. Carlos Rafael Mendes descreve a Antártida como um território inesgotável de descoberta: “A Antártida é um laboratório aberto. Cada expedição responde a uma pergunta e devolve muitas outras”. Graça Sofia Nunes concorda e acrescenta que “é uma questão cheia de perguntas por responder”.
Ana Brito deixa a mensagem final que ecoa em todos os colegas: “A Antártida é um sistema vulnerável e frágil, em contacto direto com todos os sistemas terrestres e com o oceano global. É importante olharmos para ele e tomarmos conta dele e do resto do planeta. Tudo o que fazemos tem impacto noutros locais”.
Texto de Vera Sequeira e Joana Cardoso
Fotografias de (por ordem): Carlos Rafael Marques, Catarina Guerreiro (e fotografia de capa), e Afonso Ferreira