"Nós sabemos que a ciência é cara, mas a ignorância sairá muito mais cara"

O nosso dia-a-dia, as nossas inquietações, os desafios e riscos que nos afetam e afetam o planeta deixam-nos pouca disponibilidade mental para pensar no itinerário que nos trouxe até ao mundo de hoje – o Megalaiano ou Idade de Meghalaya, o recente capítulo da história da Terra.

Mas um dos grandes benefícios da ciência é a capacidade de reconstruir o passado que permite construir cenários futuros plausíveis e coerentes. Na escola, todos ouvimos falar da teoria da evolução de Darwin – sabemos como evoluíram as espécies. O que nem Darwin soube explicar foi a origem e a diversificação das plantas com flor (angiospérmicas).  Estas surgiram “apenas” há cerca de 130 milhões de anos, no início do período Cretácico, no entanto estranhamente representam hoje a maior parte das plantas. Um grande mistério.  

Mistério esse que o investigador do MARE Mário Mendes tem, a passos largos, tentado desvendar. E prova disso é o último artigo - "Battenispermum hirsutum gen. et sp. nov., a new Early Cretaceous seed from Portugal with chlamydospermous organisation”- publicado no volume de maio de 2020 da revista Cretaceous Research. Investigação que o faz acreditar que um novo grupo de plantas encontrado na Bacia Lusitaniana poderá representar a tal transição entre “não angiospérmicas” e angiospérmicas. Um artigo com um título quase impronunciável que nos podia fazer querer fugir à matéria, mas o investigador explica tudo sobre o assunto nesta entrevista.

 

Qual era a pergunta que tinha em mente quando iniciou este estudo?

Vou explicar-lhe. Esta história até aconteceu um pouco por acaso porque nós quando começámos a estudar as plantas no Cretácico da Bacia Lusitaniana não nos preocupávamos com as plantas do grupo das Bennettitales-Erdtmanithecales-Gnetales (grupo BEG), o objetivo inicial era outro. Quando iniciei a minha dissertação de doutoramento pensámos fazer um trabalho que relacionasse as plantas com flor com os pólenes que aparecem dispersos no sedimento e comecei a trabalhar com o professor João Pais nesse sentido. Existia uma curiosidade enorme em tentar identificar as flores que produziram determinados pólenes de angiospérmicas que aparecem dispersos no sedimento separados da planta mãe. Sabíamo-los pólenes atribuídos a plantas com flor, mas não sabíamos qual era a planta ou a flor que os tinha produzido. Então começámos a fazer amostragens em afloramentos no Cretácico inferior. Mas começámos pelos andares mais baixos (e.g., Berriasiano, Valanginiano). É claro que tinha vários componentes da flora – apareciam fetos, sementes de coníferas, fragmentos de coníferas, esporos lindíssimos atribuídos a fetos, mas não tinha flores nem tão pouco pólenes de angiospérmicas. E algures pelo Barremiano começaram efetivamente a aparecer alguns pólenes, mas as flores não apareciam. O objetivo da tese era relacionar os pólenes dispersos no sedimento com as flores. Entretanto, já há bastante tempo a investir nas amostragens, com saídas de campo em que trazíamos quilos e quilos de material que depois é trabalhado de forma aturada no laboratório, continuávamos sem material que possibilitasse o desenvolvimento de uma tese de doutoramento e eu já estava a ficar até um pouco assustado com aquilo. Entretanto o professor João Pais insistiu comigo para apurar a técnica de estudos palinológicos e enviou-me para o Muséum national d’Histoire naturelle de Paris, onde realizei vários estágios com o doutor Jean Dejax, do departamento de Paleobotânica, sobre a palinologia do Cretácico. Quando regressei continuámos os nossos trabalhos, mas o material que havia era pouco. Chegámos a um ponto que percebemos que não podíamos continuar assim, tínhamos de reestruturar o trabalho.

 

E nesse momento, qual era o rumo a tomar?

O que pensou o professor João Pais? Ele ia, na altura, para Espanha para um Congresso em Granada, então pensou em enviar-me para o Swedish Museum of Natural History de Estocolmo (Suécia) para começar a trabalhar com a professora Else Marie Friis que, ulteriormente passou a orientar os meus trabalhos de doutoramento. Entretanto, encontrou-a em Espanha, disse-lhe que tinha uma pessoa a estudar as angiospérmicas, e a professora mostrou-se solícita e interessada, disse que eu poderia ir. Em maio de 2006 meti-me no avião e fui para a Suécia. Confesso que as minhas expectativas não eram muito grandes, porque o grupo sueco é completamente blindado – ninguém entra ali. Muitos colegas meus de outras instituições estrangeiras ficaram deveras admirados pelo facto de eu ter conseguido entrar no Swedish Museum of Natural History e passar a trabalhar com o grupo sueco.

 

As expectativas não eram as melhores. Como correu a experiência na Suécia?

Entretanto cheguei à Suécia, levei imenso material que tinha, revimos esse material e a professora Else Marie Friis disse que o que estávamos a fazer não fazia grande sentido - amostragens em andares inferiores do Cretácico é claro que jamais seriam encontradas flores ou pólenes de angiospérmicas (mesmo que encontrássemos seriam raras, ainda estavam no seu início). Devíamos pensar nisto doutra forma. Como pessoa extremamente inteligente e a par do que eu estava a fazer, viu em mim a “peça” que faltava – alguém que conhecia bem as técnicas de trabalho em palinologia. Pensou que se houvesse uma pessoa a trabalhar bem na área e se pudesse dedicar também ao estudo de toda a flora, poderia ser bom. As plantas são organismos extremamente sensíveis às alterações climáticas em escala continental, constituindo testemunho de modificações paleoambientais que afectaram o ambiente terrestre. Por conseguinte, o estudo das plantas fósseis tem grande interesse paleoecológico, pois permite tirar ilações acerca da paleoclimatologia e paleoecologia local e regional dessa época, designadamente no que se refere a anomalias de temperatura e de precipitação.

A professora Else Friis sugeriu que se fizesse o estudo das mesofloras e das palinofloras da Bacia Lusitaniana e que aproveitássemos tudo. Estudos filogenéticos já andavam a ser desenvolvidos. No âmbito das angiospérmicas, era importante perceber como elas apareceram, por que razão vários grupos de plantas se extinguiram e aquele proliferou de uma forma tão significativa relativamente a outros? Como é que as plantas com flor aparecem subitamente e passa a dominar a flora? Qual foi o episódio que possibilitou toda esta diversificação? Sempre pensámos na possibilidade de terem sido as condições climáticas, mas há outros aspetos aqui envolvidos. E o nosso trabalho passou a ser desenvolvido neste sentido. Passei a trabalhar entre Portugal e a Suécia.

 

 

 

Como aparecem as ditas plantas?

No meio de tanto material, identificámos a ocorrência de algumas sementes que apresentavam uma estrutura peculiar mas, não lhes atribuímos grande importância de início. Não era coníferas, eram “não angiospérmicas”. Até que foram aparecendo mais e percebeu-se que tínhamos algo de diferente. Havia um grupo de sementes que são características, partilhavam um plano de organização estrutural comum, ou seja, quando começámos a mexer nelas com algum detalhe, percebemos que eram constituídas por três tecidos distintos e apresentavam um ápice micropilar pontiagudo. Tinham um tecido interno, o nucelo, preservado sob a forma de fina película, por sua vez, o nucelo está envolvido por um tecido fino de natureza membranosa, o tegumento interno, e a envolver externamente essas sementes aparece um tecido esclerenquimatoso, o envelope da semente. E este padrão de organização é comum às sementes de três ordens: Bennettitales, Erdtmanithecales e Gnetales (grupo BEG). Das quais as duas primeiras estão extintas. Depois começámos a perceber que existem algumas analogias entre estas sementes e os carpelos das flores em termos de forma/morfologia. Aliás esta última (Battenispermum hirsutum), quando a observei pela primeira vez à lupa, parecia uma autêntica flor com três carpelos que não fundidos, mas separados. Posteriormente, no microscópio electrónico de varrimento, constatámos que as estruturas alongadas que pareciam os estiletes dos carpelos correspondiam a uma região micropilar pontiaguda. Além disso, encontrámos também estruturas masculinas – órgãos polínicos com grãos de pólen atribuíveis à ordem das Erdtmanithecales.

 

O que neste momento falta para completar este puzzle?

Estamos a tentar encontrar sementes com pólenes in situ e o que acontece nestas sementes é que não é fácil encontrar no micrópilo das sementes grãos de pólen. Eu recordo-me na primeira publicação em 2008 observámos trinta e tal spécimes no microscópio electrónico de varrimento espécies, estivemos um dia e meio a fazer observações detalhadas de cada uma daquelas sementes, e foi precisamente na última que apareceram pólenes in situ no micrópilo. Nós já tínhamos visto os pólenes, mas na parede das sementes, pelo que, poderia tratar-se de contaminação. Obviamente que depois fomos comparar e era o mesmo tipo de pólen. E a nossa dificuldade é exatamente encontrar espécies com pólenes in situ. Porque é que acontece? Eu penso que estas plantas deveriam ser unissexuais, ou seja, deveriam ter os sexos separados, e isso dificulta um pouco mais a associação de grãos de pólen na parte feminina, porque se pensarmos numa flor que tem lá a parte masculina e feminina é muito mais fácil - muitas vezes até mesmo não estando os pólenes todos no estigma encontram-se na própria flor e sabemos que tiveram origem nos estames daquela flor. Neste momento falta-me encontrar mais formas com pólenes in situ, e gostaria, sobretudo, de encontrar na mesma jazida fossilífera, isto é, na mesma flora, a parte masculina e a parte feminina de uma mesma planta e aí conseguimos fechar o círculo. Estou convicto de que o segredo para este “mistério abominável” se encontra nas plantas do grupo BEG.

 

 

Porquê Torres Vedras?

A Jazida de Torres Vedras é uma das mais antigas que temos em Portugal, é uma jazida muito rica com idade atribuível ao Barremiano. Esta publicação que saiu agora diz respeito à descrição de uma nova semente Battenispermum hirsutum, que corresponde a novo género e espécie. Por curiosidade, dediquei o novo género ao doutor David Batten, professor emérito da Universidade de Manchester (Reino unido), falecido em fevereiro do ano passado vítima de cancro. O David era um ser humano fantástico, um cientista extraordinário. Aprendi muito com ele. Esta nova semente foi recolhida na jazida fossilífera de Catefica (localizada sensivelmente 4 km a sul de Torres Vedras. No entanto, é de referir que grande parte das sementes do grupo BEG e órgãos polínicos têm sido reconhecidos em mesofloras do Cretácico inferior do Juncal (a sul de Leiria).

 

 

 

Quando encontramos a flor? Qual é a idade da primeira planta com flor que apareceu na terra?

Não lhe vou dizer que foi no Barremiano, pode não ser. Aliás, em Portugal foi reconhecido um pólen atribuível ao género Clavatipollenites no Valanginiano do Porto da Calada (Ericeira). Apesar da inegável qualidade científica do trabalho, eu confesso que tenho algumas dúvidas. Já lá andei a fazer colheitas de amostras, mas nunca encontrei pólenes atribuíveis a Clavatipollenites, ainda por cima só aparece um.

 

Portugal tem, portanto, riquíssimas jazidas...

Nós em Portugal temos condições únicas. E não é por acaso que o nosso país está a ser completamente vigiado - entram aqui investigadores de todo o lado. Alemães, chineses, japoneses, suíços, espanhóis vêm ao nosso país fazer recolhas. Porquê? Quando ocorreu a abertura do Atlântico (recorrendo ao passado, quando ainda existia um continente - a Pangeia, que depois se fragmentou originando Laurásia e Gondwana) formou-se uma bacia na zona Oeste do nosso país, a Bacia Lusitaniana, onde temos todos os andares do Cretácico representados. Isto significa que podemos acompanhar a evolução florística, desde os tempos em que predominavam as gimnospérmicas e pteridófitas até ao Cretácico superior onde já dominam claramente as plantas com flor.

O que me choca? A possibilidade de “qualquer um” entrar no nosso país, levar o nosso material, e não “dar cavaco” a ninguém porque não há lei que proteja o nosso património paleontológico. Ao contrário do Brasil onde, na Bacia do Araripe nomeadamente, se dá mais importância aos fósseis do que à própria pedra, e não é possível fazer colheitas sem autorização. Não percebo porque no nosso país não há regras para proteger o património. Não nos podemos esquecer que o património paleontológico é um bem nacional, fundamental e inalienável pelo que deve ser protegido.

 

 

Em Portugal este tipo de estudo é pouco financiado. Porquê?  

Eu não concordo com o que está a ser feito no nosso país. Criaram-se as áreas prioritárias e é claro que quando há fundos para projetos vai tudo para a Biomedicina. É claro que os estudos realizados em domínios científicos, tais como, a medicina, farmácia, engenharia e novas tecnologias são importantes. No entanto, não nos podemos esquecer que há outras áreas da ciência que também requerem atenção. Nós sabemos que a ciência é cara, custa imenso dinheiro, mas acredito que a ignorância sairá muito mais cara. Quando a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) abre concurso para projetos de investigação em todos os domínios científicos e depois se verifica que em determinados painéis (e.g., Ciências da Terra) se financia apenas um projeto ou dois, acho que não faz sentido. Continuando assim, julgo que determinadas áreas do saber estão votadas ao esquecimento e ao desaparecimento. Aliás, eu utilizo técnicas de trabalho extremamente dispendiosas, nomeadamente, a microtomografia de raios X por radiação de sincrotrão (no Instituto Paul Scherrer, em Zurique, na Suíça) e quem financia estes trabalhos é o Swedish Research Council. Em Portugal, até tenho tido a sorte de ter tido financiamento da Fundação Millennium BCP e da Fundação Amadeu Dias que concedem algumas verbas para a investigação. Mas não é fácil. Neste momento tenho dois projetos – um em Praga (República Checa) e outro, recentemente aprovado, em Hanôver (Alemanha).

 

Dando uma volta de 360º, vamos passar para a sua história: porquê esta área?

A minha formação de base é biologia, e a evolução da vida na terra sempre me fascinou. Além disso, sempre tive “uma queda” ou apetência especial pela área da botânica. Curiosamente no ano de 2000 entrei como assistente para o departamento de Geociências da Universidade de Évora e comecei a lecionar aulas de paleontologia e naquela altura estava para começar a fazer um trabalho na área de tubarões e raias, mas entretanto tudo mudou. Muitos colegas consideravam um desperdício dedicar-me ao estudo de vertebrados tendo em conta a minha formação de base na botânica e ao saber de experiência feito que já havia adquirido. E, entretanto, numa reunião com o Professor João Pais, que me recordo como se fosse hoje, apercebi-me que era uma pena de facto não aproveitar os conhecimentos que já tinha e mudar para uma outra área onde iria ser tudo novo para mim. Seria mais vantajoso investir numa área onde não há ninguém - eu sou o único paleobotânico do país. Os meus colegas até brincam comigo e dizem que sou neto do professor Carlos Teixeira (o primeiro paleobotânico) e filho do professor João Pais (que trabalhou com o professor Carlos Teixeira). Precisamente por influência do professor João Pais e porque já tinha experiência acabou por ser assim.

 

A melhor parte de ser investigador?

Numa frase, diria que a melhor parte é saber muito bem o que nós queremos fazer e aquilo que fazemos, fazer com entusiasmo.

 

Por curiusidade, quais são as flores que costuma oferecer?

Rosas

 

Conselho ambiental?

Gostaria que as pessoas dessem mais importância ao património paleontológico de Portugal. É um bem nacional, é fundamental e inalienável, e deve ser protegido para que possa ser transmitido às gerações futuras.